A Que Mais tem Lá? te convida para um passeio além do óbvio na Pequena África, lugar de resistências que contam a História do Brasil e é berço de artistas consagrados na Literatura e na Música

A Zona Portuária do Rio é composta por morros que guardam memórias inestimáveis da identidade brasileira. Memórias que foram narradas e inspiraram ninguém menos do que o maior escritor brasileiro de todos os tempos, o mundialmente conhecido Machado de Assis (1839-1908), que nasceu e foi criado próximo a Pequena África, mais especificamente no Morro do Livramento.

 

Reduto de trabalhadores e resistência das religiões e das culturas negras, a região é berço de renomados artistas, representantes de parte historicamente marginalizada da população. Ali ficam ainda o Morro da Conceição, que fica no alto da Pedra do Sal, hoje conhecida pelas animadas rodas de samba, o Morro da Providência, o Morro da Saúde, o Morro da Gamboa, o Morro do Pinto e o Morro de São Diogo – muitos deles pouco conhecidos até por viajantes frequentes na cidade. 

 

Morro do Livramento: o berço de Machado de Assis

Machado nasceu nas terras pertencentes ao senador do Império Bento Barroso Pereira. Como referência cronológica, o Morro do Livramento já existia desde 1670. Vindo de família pobre, filho de um pintor descendente de negros alforriados e de uma portuguesa que trabalhava como lavadeira, o pai de Brás Cubas, Capitu, Quincas Borba, entre tantas outras personagens inesquecíveis, ficou órfão de mãe ainda criança, sendo criado com a madrasta. 

Com pouco acesso aos estudos, começou muito jovem a escrever poesias. Depois tornou-se aprendiz em tipografia e, poucos anos mais tarde, já era revisor no Correio Mercantil e redator do Diário do Rio de Janeiro. Trabalhou para jornais, revistas, teatro e seus textos, de folhetim, transformaram-se em grandes obras literárias, sendo o autor de clássicos, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, e Dom Casmurro, publicado em 1889. Também assumiu cargos públicos e foi fundador da Academia Brasileira de Letras, instituição de grande relevância para o cultivo da língua e da literatura nacional. 

 

Estátua em homenagem a Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras

Homenagem à Machado de Assis na Academia Brasileira de Letras (ABL)

 

Segundo a professora de Literatura Brasileira Hilda Maretta, a luta do autor por um lugar na sociedade representa um rompimento significativo de barreiras: “Machado de Assis é um dos autores brasileiros mais estudados no Brasil e fora dele. É um autor negro em uma época em que ser negro era sinônimo de ser desqualificado. A genialidade de Machado é inegável. Ele apresentou vários recursos estilísticos que acompanhamos hoje na literatura, em filmes e séries. É referência não só de autor mas também da luta pelo reconhecimento como cidadão, como pessoa e como grande potência na sociedade do século XIX”, esclarece.

 

Pequena África: da Pedra do Sal à Praça Mauá, história e memória caminham de mãos dadas

Caminhar pela Zona Portuária do Rio é um convite para viajar por um longo capítulo da História do Brasil e, ao mesmo tempo, refletir sobre o futuro. Não deixar o passado se apagar é um compromisso renovado por diversas gerações e se reconfigura a cada nova descoberta. Desbravar a região é reverenciar esse legado histórico, desfrutar da boa gastronomia e da alma boêmia carioca e projetar um futuro com inúmeras possibilidades. E isso tudo à beira-mar!  

 

A Pedra do Sal – que teve seus primeiros registros datados de 1608 – é um monumento numa área que servia de passagem para as pessoas escravizadas que desembarcavam dos navios atracados por ali. Representa um local histórico de forte resistência negra, onde se encontra a Comunidade Remanescentes de Quilombos da Pedra do Sal, berço dos cultos afros, reduto da cultura africana e que, mais tarde, revelaria o samba. O local recebe milhares de turistas todos os anos atraídos, principalmente, pelo ritmo contagiante das rodas comandadas por sambistas raiz. Devido à sua relevância histórica, em 1984, a Pedra do Sal foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC).

Nessa região, também se encontravam os zungus, que eram espaços coletivos ocupados pelos negros escravizados e livres. Por esse motivo, o lugar passou a ser chamado de Pequena África. Por ali, milhares de navios desembarcavam com pessoas e mercadorias ao longo de séculos. Era o local onde os negros escravizados, quando não vinham comercializados, eram negociados. Algumas mercadorias, como o sal, eram armazenadas no alto do Morro da Conceição. Outras eram armazenadas na parte baixa, onde se localiza o Largo de São Francisco da Prainha, que, atualmente, tornou-se um dos principais pontos boêmios da cidade, graças à quantidade de bares e restaurantes que movimentam a região. 

 

Pedra do Sal na Pequena Àfrica

Pedra do Sal

 

Cais do Valongo na Pequena África: local integra a Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO

 

Em um período mais recente da História, durante as obras de revitalização da Zona Portuária, em 2011, diversos objetos e ossadas foram encontrados na região da Pequena África, descobrindo-se, então, o Cais do Valongo, considerado o maior porto receptor de pessoas escravizadas do mundo. Em reconhecimento ao seu valor universal excepcional, em 2017, o Cais do Valongo foi incluído na Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Outro fato relevante é que esse local guarda dois momentos distintos: o primeiro, da sua construção em 1811 até 1831, quando o tráfico de escravos foi proibido; e o segundo, com a sua reforma em 1843, para o desembarque da Princesa Teresa Cristina, que veio se casar com Imperador D. Pedro II. Nessa época, o atracadouro passou a se chamar Cais da Imperatriz, em um claro processo de apagamento histórico.

 

Cais do Valongo na Pequena África

Cais do Valongo

 

Com as obras de revitalização da Zona Portuária, as peças foram armazenadas e se tornaram fonte de valorização da memória do lugar, até então adormecida. A partir daí, uma nova fase se inicia na Pequena África, com a criação da construção paisagística do Jardim Suspenso do Valongo; do Instituto dos Pretos Novos (local que guarda parte da arqueologia encontrada na região); e do Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB), que oferece ao público exposições e diversas atividades culturais (atualmente em obras).

E chegando com um brilho especial na Pequena África, o espaço mais recente que pulsa cultura e literatura, promovendo o encontro entre os saberes da ancestralidade com os das novas gerações: a Casa de Escrevivência Conceição Evaristo. Localizado no Largo da Prainha, ela conta com acervo bibliográfico e artístico inaugurado pela própria escritora, que transformou um antigo casario em uma biblioteca comunitária composta por livros, cartazes, moções honrosas e prêmios conquistados ao longo da sua trajetória.

 

Do passado ao futuro, às reflexões do presente

A Zona Portuária se transformou em um pólo cultural de valor inestimável para a cidade do Rio de Janeiro, conectando o passado e o futuro por meio da cultura, do lazer, da gastronomia, dos museus e centros culturais. Após a revitalização da região em 2011, ela ganhou novos espaços e novas formas de perceber a memória local. O tão sonhado “Porto Maravilha”. 

 

A região da Praça Mauá, por exemplo, contou com a reforma do atual Cais do Porto (onde aportam os navios de cargas, cruzeiros e transatlânticos), dando vida ao pulsante Pier Mauá; a criação de uma galeria a céu aberto, no corredor dos galpões, com painéis pintados por renomados artistas; a construção do Museu de Arte do Rio (MAR) e do Museu do Amanhã; além da abertura de vias do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) e de uma extensa área livre com um visual único para a Baía de Guanabara. Atualmente, passa por controversos projetos de adensamento habitacional.

 

Museu do Amanhã

 

No Museu de Arte do Rio (MAR), é possível conferir exposições que unem dimensões históricas e contemporâneas da arte e atentas aos principais debates na sociedade, além de eventos e da Escola do Olhar, que integra arte e educação. O terraço é uma atração à parte, com uma vista simplesmente cinematográfica!

Já o Museu do Amanhã, é um museu de ciências que provoca reflexões sobre as grandes mudanças em que vivemos no presente e as possibilidades de futuro. Busca promover a inovação e divulgar os avanços da ciência, guiados pelos valores da Sustentabilidade e da Convivência. Importante, contudo, olhar para o amanhã sem se esquecer do ontem – de que essa região é testemunha ocular.

Em suma, é possível conhecer todos os pontos turísticos, culturais, históricos e de lazer da Pequena África e da Zona Portuária a pé, caminhando pelas ruas que convergem ancestralidade, atualidade e esperança de um futuro próspero e sustentável. Uma região com muitas atividades e inúmeros aprendizados e reflexões sobre o que já fomos e para onde queremos seguir. Um roteiro fundamental para vivenciar, em sua essência, a História do Rio de Janeiro. 

 

 

Dica da Que Mais Tem Lá?

 

Conheça na QMTL, a “Rota Machado de Assis” e descubra o Rio de Janeiro a partir da vida e das obras desse ícone da Literatura Brasileira. 

 

Texto elaborado por Carolina Grimião, carioca raiz, atua no Carnaval há mais de 15 anos e possui suas atividades voltadas para o Samba, Carnaval, Cultura Popular, Mídia e Cidade. Carolina é mestra em Comunicação Social, Professora, Jornalista, Historiadora e Psicopedagoga.

Editado por Cássio Aoqui e Luanda Bonadio.

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